Os mercados dos Estados Unidos atravessam uma fase de humor delicado. Depois de meses de rali alimentado por expectativas de cortes mais agressivos nos juros, os investidores agora se veem diante de um cenário menos previsível: dúvidas sobre a trajetória do Federal Reserve, tecnologia sofrendo realização e um pano de fundo global que adiciona risco ao quadro.

O resultado é uma correção que vem se arrastando — e que tem ampliado a aversão ao risco.

1. O fantasma do “corte em dezembro” começa a desaparecer

Até poucas semanas atrás, Wall Street praticamente tratava como certo mais um corte de juros de 0,25 ponto ainda em dezembro. Agora, esse cenário virou dúvida. Depois de uma série de discursos mais cautelosos de dirigentes do Fed, as chances de um novo corte caíram para menos de 50%.

A mudança começou com uma das vozes mais “dovish” da instituição: Mary Daly, presidente do Fed de San Francisco, que vinha defendendo reduções na taxa. Nesta semana, porém, ela sinalizou desconforto com uma decisão antecipada:

“Ainda é cedo para tomar posição. Quero ouvir meus colegas”, afirmou na Irlanda.

Outro nome importante, Neel Kashkari (Fed de Minneapolis), também recuou do otimismo que demonstrava meses atrás. Ele descreveu a economia como “mista”: inflação ainda perto de 3%, partes do mercado de trabalho sob pressão e setores da economia funcionando em velocidades diferentes.

Quanto mais dividida a comunicação do Fed, maior a ansiedade do mercado.

2. A correção da tecnologia finalmente chegou

O setor de tecnologia — o motor das altas dos últimos dois anos — virou o epicentro das perdas da semana.

– Nasdaq 100: queda de 1,6% nos futuros

– S&P 500: caminhando para a segunda semana negativa

– VIX: acima de 22, refletindo aumento na aversão ao risco

As “sete gigantes” da tecnologia registram baixas acentuadas, à medida que o mercado questiona valuations que já vinham sendo considerados esticados. Até o Bitcoin, que muitas vezes se dissocia de ciclos tradicionais, caiu para sua menor cotação em seis meses.

A narrativa é simples: quando o juro futuro perde força, tech perde sustentação — e quando dúvidas sobre juros crescem, tech sofre duas vezes.

3. China desacelerando adiciona outra camada de instabilidade

Dados recentes mostraram que a economia chinesa esfria mais rápido do que o previsto:

– queda inédita nos investimentos,

– indústria crescendo menos,

– e sinais de que o quarto trimestre será fraco.

Para Arnaud Girod, da Kepler Cheuvreux, isso não poderia vir em pior momento:

“O nervosismo vem de vários lados. Sem dados suficientes, o Fed tem mais chance de não cortar os juros — e isso é ruim para o mercado.”

A combinação China fraca + EUA incertos cria o tipo de ambiente em que investidores diminuem risco por instinto.

4. O entusiasmo com IA passa por um choque de realidade

O boom de inteligência artificial sustentou uma parte relevante das altas de 2023 e 2024. Mas os custos astronômicos para treinar modelos e expandir infraestrutura começam a pesar nas projeções — e analistas começam a questionar se os preços das ações não avançaram bem mais rápido do que a geração de lucros.

Essa mudança de percepção reforçou a rotação de carteiras:

saída de empresas de tecnologia,

entrada em setores defensivos,

e maior busca por proteção.

O S&P 500 caiu pouco mais de 2% desde o recorde recente — um recuo modesto — mas o Nasdaq já perdeu quase o dobro disso.

5. Um mercado que precisa de clareza (e não tem)

O pano de fundo é um só: quando o Fed fala em tom dividindo, a volatilidade volta. Quando tech corrige, todo o mercado sente. E quando a China desacelera, o investidor global pisa no freio.

Aneeka Gupta, da WisdomTree, resume bem:

“Tech é sempre a primeira a sentir quando há um revés — porque ainda carrega os valuations mais inflados.”

Por enquanto, não há sinal de pânico — mas há desconforto. E a narrativa dominante virou uma só: para retomar fôlego, Wall Street precisa de direção. E o Fed ainda não sabe qual será a próxima curva da estrada.